terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O mundo dos humildes

Poucas coisas me emocionam tanto como uma pessoa muito, muito humilde. Mas não é muito humilde, no sentido de muito pobre, ou (apenas) de muito sofrida. É muito, muito humilde, endendeu?
E não é que me emociona no sentido triste da palavra. Me emociona no sentido bonito, daquele que, se por um acaso, seus lábios não sorrirem incontrolavelmente, seu coração sorrirá o sorriso mais aberto de todos.
A emoção da tristeza, me levaria a pensar algo do tipo "tadinho, como eu queria que ele melhorasse de vida". A emoção bonita, aquela que só os muito, muito humildes me provocam, já me leva a pensar "incrível, invejo esse homem".
Que estranho é invejar uma pessoa bem humilde, que não possui quase nada de dinheiro e quase não tem bens. Pois é, mais uma arte dos muito, muito humildes.
Eles nos ensinam, nos mostram como ser felizes, tem uma sabedoria fantástica e podem dar aula sobre o tema mais procurado de todos os tempos pela humanidade: como ser feliz. E o mais curioso, é que todo mundo quer ser feliz, mas pouquíssimas pessoas perguntam como para a pessoa certa. Passam a vida numa correria incessante, fazem cursos, competem, mudam de empregos e nada.
Os poucos que descobrem essa fonte de sabedoria, se espantam, pois os muito, muito humildes ensinam sem saber e quando os elogiamos, quase morrem de vergonha: "onde já se viu, doutor, quem sou eu...". E nos deixam mais envergonhados em ver o quanto estamos, ainda, longe daquela evolução toda.
Eles estão por todos os lados, graças a Deus. Falta só prestarmos mais atenção.
Engana-se quem pensa que basta nascer pobre para ser muito, muito humilde. Existem muitos pobres que são tão esnobes quanto os maiores magnatas do nosso país, só não tem o dinheiro deles.
Para ser uma pessoa muito, muito humilde, é preciso nascer assim ou lutar muito, querer, muito, melhorar como pessoa. Abdicar, não do dinheiro ou posses, mas abdicar de algo maior que isso: o ego.
Uma pessoa muito, muito humilde tem ego também. Só que ele é perfeito. É humilde.
Da próxima vez que cruzar com uma pessoa muito, muito humilde, não perca a oportunidade, converse com ela, aprenda e depois segure em suas mãos e agradeça. E quando a pessoa se envergonhar, ficar vermelha e sem-graça por você tê-la elogiado, apenas sinta aquela sensação boa, que sentimos quando nosso coração abre um enorme sorriso.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Clarice Lispector

Li um texto da Clarice Lispector daqueles que dá vontade de reler em seguida.

O medo da eternidade (por Clarice Lispector)

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.
- Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta. Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito. Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar. Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingidos espanto e tristeza. – Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse – repetiu minha irmã – que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.