quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O cachorro manco

Ele sempre gostou de animais. Não foi surpresa quando se apaixonou por aquela filhotinha de labrador, cor de chocolate. "É essa!", pensou. Assim levou a pequena cadelinha para casa.
Os meses foram passando, e ela crescia rápido, como os cachorros de sua raça e, um ano depois, já estava grande. Postura imponente e pelo impecável. Muito bem cuidada, era o orgulho de sua família.
Gostava da brincadeira de se referirem a ele como pai de sua chocolate. Era como se fosse. Cuidava, alimentava, passeava, brincava, ensinava... Assim o carinho mútuo ia crescendo.
Alguns meses mais, e a natureza visitou sua casa, lembrando que animal algum escapa de suas leis. O cio chegou para a jovem chocolate. Nunca é fácil para um pai aceitar que sua filha se inicie na vida sexual. Mesmo que essa seja uma cadela. E assim, chocolate começou a desejar os machos de sua espécie.
Mas ele percebeu que sua "princesa" tinha uma vontade maior de iniciar sua vida mundana. Para seu desgosto, queria dar para qualquer cachorro que se apresentasse. Uma manhã, deu risada quando um pincher, ridículo de tão pequeno, se aproximou, se engraçando para ela. Se assustou quando a viu arrastar a barriga no chão, abrir as pernas, fazendo de tudo para facilitar o incrédulo baixinho a realizar suas mais loucas fantasias sexuais.
"Ah, não!! esse pirralho não vai comer minha cachorra!!", pensou e afastou o minúsculo cãozinho, o deixando na mão, ou melhor, na pata...
Para seu desgosto o cio de sua chocolate durava muito, mais de duas semanas, e na frente de sua casa, uma matilha se formava. Era como se houvesse uma placa: "aqui mora uma vagabunda". E para piorar, ela dava a impressão que queria dar pra todos, ao mesmo tempo. "orgulho do pai", pensava, e saía para espantar aquele monte de cachorros sedentos da frente de sua porta.
Mas o que mais o irritava, era aquele cachorro manco. Todos fugiam, se escondiam. Mas o manco logo voltava, só ele, desafiando o pai protetor. Encarando, como quem dizia: "vou comer sim!". Tinha uma perna atrofiada, mancava completamente, mas se achava bonito o bastante para traçar uma bela labradora.
Foram vários dias, espantava todos, mas o cachorro manco o ameaçava, como quem enfrentava alguém a ponto de atacar a qualquer momento.
Uma manhã daquelas, difíceis no trabalho, stress, cabeça cheia, e um monte de cachorros latindo, fazendo uma algazarra do lado de fora. Parecia que entendia o que queriam dizer: "Ô coroa, libera a belezura aí pra gente dar um xamêgo nela!".
Todos temos nosso dia de fúria. O dele foi aquele. Dificuldade em se concentrar, problemas, trabalho acumulado, latidos; saiu como um raio de casa, liberando toda raiva, gritando com os cachorros e espantando a todos, mas em seguida, o cachorro manco voltou, o desafiando.
- Não, meu amigo, hoje você escolheu o dia errado! - disse como para si mesmo e correu em direção ao adversário.
Ploft! O chutou, com toda a raiva do mundo, como se fosse uma bola de futebol americano rumo a sua alta trave. O Cachorro subiu, e subiu. Por um momento, quase sorriu de raiva. Olhou para o lado e viu seu Manoel. Um português, seu cliente, um homem sofisticado, culto, poeta. Daqueles que o convidava a se sentar na mesa do restaurante para degustar um bom vinho. Não sabia se dava uma risadinha sem graça ou se chorava.
- Estais nervoso, hã? - perguntou o português.
- Ô, seu Manoel... Pois é. Esse cachorro... - não havia como dar explicações. Nem com todo tempo do mundo conseguiria explicar cada tijolo de história que o levou àquele momento. E depois de uma atitude daquela, provavelmente, seu Manoel nem daria ouvidos.
Foi para casa triste. Abriu a porta de sua casa e deixou sua cadela sair. Para a alegria de todos os cachorros do bairro.